quinta-feira, 26 de maio de 2011

Relatos de uma morte

Eu estava jantando quando me chamaram. Eu desci. Quando a mulher me perguntou “Você tem um gato?” Eu pensei que ela estava querendo um dos meus, o que eu não ia dar. Então tive que pedir para ela repetir, e ela repetiu a mesma coisa, ao que eu tive que responder “Tenho, sim”. Então ela disse “Ele está morto, aqui do lado” e apontou para a calçada da vizinha. “Ele está morto” foi o que ela disse.
Na hora eu pensei que era um dos meus gatos que tinha desaparecido há um tempo. Eu não queria sair e ver. Mas eu fui.
Quando eu olhei, não soube discernir se o gato era realmente meu. Logo eu pensei no Bohan, o gato favorito da minha irmã, mas era muito magro para ser ele. Eu agachei e fiquei olhando.
“É seu?” não parava se me perguntar a moça, ao que eu não parava de responder “Eu não sei, eu não sei”. Mas eu sabia muito bem. Era uma gata, e ela não tinha nome. Isso porque ela, junto com a sua irmã, e outro que já havia morrido, eram ariscos. Eles viviam sim na minha casa, e comiam da ração que eu dava para os outros gatos, mas não deixavam encostarem neles.
Mas não foi nenhum desses motivos que me deixaram atônita, e sim como ela havia morrido. Foi atropelada. Mas o carro só lhe acertara a cabeça. Ou o pescoço. Eu não sabia ao certo. Eu não via um dos olhos, porque tinha pulado para fora, eu via muito sangue. Alguém disse que ela saiu pulando até cair jazida ali, e que a rua estava ensangüentada. Diziam algo sobre um fusca branco, sobre ter sido de propósito, e faziam piadas. Mas eu não ouvia, eu não ouvia nada, eu só conseguia olhar para a gata.
Então me levantei e disse “E minha sim, a gata” e a mulher colocou a mão no meu ombro e disse “Eu sinto muito”. Mas ela não sentia. Ninguém ali sentia absolutamente nada em relação a morte de uma gata qualquer. Nem eu mesma conseguia sentir. Eu queria muito, mas não sentia nada.
Eu subi de novo para pegar sacolas e desci. Achei que ia ter que fazer sozinha, mas meu irmão chegou do serviço. Ele já estava a par de tudo, com tanta gente a fofocar na rua. Ele guardou a bicicleta e veio até mim.
Eu disse “Você tira ela de lá?” E ele respondeu que precisaria de ajuda. Eu segurei uma sacola aberta, e com outra meu irmão pegou a gata do chão, e disse “Feche os olhos.” Eu não queria fechar, eu queria ver. Eu realmente queria ver, mas mesmo assim fechei os olhos. Depois ele pegou a sacola, já com a gata dentro e disse “Não dá pra enterrar agora, tá muito escuro. Amanhã cedo o pai enterra.” E deixou a sacola num canto da garagem. Eu tranquei o portão e subi. Meu jantar estava frio, e havia perdido o gosto.
Pela manhã, no “enterro” da gata, eu vi todo aquele sangue na frente da minha calçada. Então eu me lembrei de como o outro gato havia morrido. Apareceu o pobre infeliz no meu quintal literalmente quebrado ao meio. Não tinha o movimento das patas traseiras. Morreu se arrastando.
Então pensei “Teriam os excluídos que morrer sempre tragicamente, sem alguém com algum sentimento que não fosse pena a velar os seus corpos?”

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Falhas

Talvez seja essa uma tentativa de explicar porque eu quase nunca escrevo. Eu digo talvez porque, no fim, eu sempre me desvio do assunto principal.
Veja bem, eu não gosto de falhas. É certo que minha vida é repleta delas, mas quando eu escrevo, eu não gosto que no meu texto ajam falhas. É como um artista não gosta de um borrão na sua pintura. Ou como um músico não gosta de um acorde errado na sua música. Certamente nesse texto haverá falhas, mas eu não posso não escrever para sempre.
Se você é do tipo de pessoa que presta atenção a cada pequeno detalhe, então talvez saiba das minhas paixões, e então talvez consiga ligar os pontos - o que não é difícil - e deduzir, por mais óbvio que seja, que eu, provavelmente, escreva um livro. Acontece que eu já escrevi um livro. Ou partes de um. Ou partes de vários. Ou partes das partes de vários livros. O problema é que nunca está bom o suficiente. Sempre há falhas, ou o tema é o mesmo tema batido de sempre. É por isso que eu queria escrever sobre o comportamento das pessoas, mas não daquela forma clichê que nem aquelas frases idiotas que as pessoas cismam em postar no tumblr e que dão vontade de vomitar. Porque eu também detesto clichês.
Eu sei que a vida em si é basicamente um clichê inteiro, mas eu não gosto de clichês. De escrever clichês. De ler clichês. O que me irrita, porque só o fato de eu estar dizendo que odeio clichês já deve ser um clichê.
Não gosto das frases repetidas de amor e relacionamento. Não gosto dos temas batidos sobre a sociedade. Não gosto das mesmas palavras que as pessoas sempre usam pra mostrar que ser diferente é bom. Isso é irritante.
O que eu queria era explicar o porquê uma pessoa mentem para si mesma. Porque você sabe, as pessoas mentem para si mesmas o tempo todo. Eu queria explicar porque as pessoas mentem. Eu queria explicar porque, por mais que as pessoas digam não, seus sentimentos sempre são volúveis. Eu queria poder explicar o comportamento humano. Mas eu não posso, porque só a ideia em si é uma falha.
Então isso vira a porcaria de um paradoxo insolúvel na qual eu mesma tenho que decidir por mim o que é errado e o que é certo. E então eu acabo por decidir não escrever nada.