sábado, 15 de dezembro de 2012

Retro-visor


Gosto do meu sorriso de dentes tortos. Pelo retrovisor do carro vejo minha boca e meu pescoço, e o olho direito cego do meu pai. Tem um terço pendurando no retrovisor, como de costume. O carro para, e eu só ouço o barulho dos para-brisas batendo. Sinto-me na cena de um filme de drama qualquer, com a chuva escorrendo pela janela. Eu olho o retrovisor e faço careta. Canto a música que está tocando no rádio. Observo cuidadosamente como meus lábios se mexem.  Mordo o lábio inferior. Sorrio um sorriso falso. Penso no significado do terço. Observo o contorno bem definido da minha boca. Eu gosto. Penso no que há atrás do sorriso de dentes tortos.  Não gosto. Não há mais reflexo no sorriso. Não há mais sorriso no reflexo. 

quarta-feira, 14 de novembro de 2012


Então ele me disse: “Se encontrar pra quê? Se até ontem tu queria se perder.”  Talvez eu tivesse que me perder pra poder me achar. Talvez eu já estivesse perdida.
Eu havia girado, e girado, e girado, e parado. Quando eu quis girar de volta, eu girei pro lado errado. E então eu achei que estava do lado certo, mas havia me enganado. Girei de volta, pro mesmo lado, tentando encontrar o lado certo e achando o lado errado. Quando eu parei, me descobri perdida, e quis girar pra me encontrar. Mas já era tarde, não tinha mais volta, girei tanto que não sabia mais como me achar.

sábado, 21 de julho de 2012

O futuro do passado


Hoje eu pintei minha boca de azul, com tinta óleo, sem querer. A cor do prato que eu quebrei mais cedo também era azul. Freud acredita que seja acaso, Jung diz que não.
Isso tudo está errado, e eu quero rebobinar. Eu tentei rebobinar a fita do Raul no rádio, mas não consegui. A tecnologia de hoje não me deixa usar a tecnologia de ontem.
A máquina de escrever não corrige meus erros ortográficos, e o filme da Polaroid instantânea ta custando caro.
Alguém trocou o carvão que eu usava pra desenhar por uma caneta esferográfica, e agora eu não sujo mais a mão.
O camelô agora passa cartão de crédito, e daqui a pouco o gigolô terá cartão de ponto.
E eu aqui, procedendo querendo retroceder, fazendo querendo desfazer, vivendo querendo morrer.
Hoje eu pintei minha boca de azul, com tinta óleo sem querer, e não quer sair mais. Mas tinta óleo não saia com água e sabão? Agora não sai mais.

quinta-feira, 8 de março de 2012

Todo dia


Odeio datas comemorativas. Pra mim elas não existem. Pra mim, cada dia é a extensão do dia anterior. Eu faço aniversário hoje. Eu faço aniversário amanhã. Eu fiz aniversário semana passada, e faço de novo semana que vem. Todo dia é dia. Todo dia eu vivo, todo dia eu faço, todo dia eu acordo e durmo, e quando eu acordo novamente, eu acordo no mesmo dia. A vida é um dia só, estendido por várias horas. Hoje é dia das mães. Hoje é dia dos pais. Hoje é dia do índio. Hoje é dia da árvore. Hoje é dia do nada. Hoje é dia, dia e noite, e dia e noite, e dia e noite.  Eu gosto de dar presentes fora de datas, porque todo dia é dia de presente. Todo dia é dia de vida. Todo dia é dia de morte. Todo dia é dia de festa. Todo dia é dia de luto. Todo dia alguém nasce, todo dia alguém morre. Todo dia eu penso. Todo dia eu sou eu e você é você. Todo dia eu cresço. Todo dia é dia de nada, todo dia é dia de tudo.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

A mentira da verdade


Sempre que as pessoas relatam um fato vivenciado, elas exageram, mentem, deformam e depravam as coisas. Isso acontece porque elas querem relatar o que queriam que tivesse acontecido, e não o que realmente aconteceu.  As pessoas tem essa necessidade de querer que as coisas aconteçam do jeito que elas querem que aconteçam, mesmo sabendo que não é assim que vai acontecer. Elas querem ter o controle, mas não tem.
 “Hoje eu vi aquele cara pulando o 10º andar daquele prédio naquela avenida.”
 “Jura, Aconteceu mesmo?”
 “Não, os policiais chegaram a tempo e convenceram-no a descer, mas eu queria que tivesse acontecido. Eu queria que ele tivesse pulado e se estatelado contra o chão. Eu queria que seus membros se desprendessem de seu corpo e voassem para todos os lados. Eu queria que o sangue espirrasse em cada individuo presente, e que os mesmo ficassem horrorizados e traumatizados. Eu queria que sua cabeça se soltasse de sua espinhada e saísse rolando até bater de encontro ao meu sapato do pé direito.”
“ Nossa, que coisa horrível, você odiava aquele cara não é? ”
“ Não, eu só queria ter uma história verdadeira e interessante para contar. Eu só queria que algo diferente acontecesse, só pra variar.”

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Frio

Agora eu estou parada. O vento frio roça meu rosto. São muitos metros até o chão, mas eu posso ouvir os carros passando, as pessoas conversando, os pássaros cantando. Um dia como qualquer outro. Mas não para mim. Hoje eu quero voar.
Abro os braços. Sinto o vento frio de inverno ao redor do meu corpo, entrando pelas frestas das minhas roupas, me fazendo tremer. Mas o frio é bom. Ele me embala e me deixa leve. Fecho os olhos. Um passo. Dois. Três. Exatamente na ponta do precipício. Abro os olhos. Sinto náuseas ao olhar para baixo. Respiro fundo e volto a ficar parada. Fecho os olhos novamente. Não ouço mais os carros, nem as pessoas, nem os pássaros. O cheio nauseabundo de poluição sumiu. O mundo sumiu.
Então o prédio sob os meus pés também desaparece, e eu vou caindo, caindo, de braços abertos. A medida que eu caio, a pressão vai comprimindo meu corpo. Mas eu estou voando, como eu queria. Eu não sinto mais dor. Eu não sinto mais desespero. Eu não sinto mais medo. Eu não sinto mais nada, só um sentimento de tranquilidade, a tão esperada tranquilidade me invadindo por dentro.
E quando estou a ponto de me estatelar no chão, eu abro os olhos. Então estou de volta ao prédio, com todos os ruídos, cheiros, e aquele velho preto e branco de mundo urbano. Olho lá em baixo. Um suspiro sai de mim, então eu digo:
- Queria que valesse a pena.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Imensidão sem fim

As vezes me vejo sentada numa caixa preta no meio de um deserto árido. Os cotovelos apoiados nos joelhos, o queixo apoiado nas mãos. Atrás de mim, milhas e mais milhas de areia, brilhante por conta do sol, mal percorridas. A minha frente, mais milhas dessa mesma areia que ainda me falta percorrer. Mas estou sentada, e não caminhando, como deveria. Isso porque, a única coisa que eu consigo fazer é ficar ali sentada, olhando ao longe a fusão entre o céu e a areia ficar ondulada por conta do sol, esperando algo rompe-lá. Eu não sei o que vai vir, e nem se virá, mas eu espero.É isso, ou percorrer mal percorrido o resto das milhas a frente. Minha testa dói, e a vontade de me esconder dentro da caixa preta em que estou sentada só aumenta. Mas ai estaria me escondendo, e eu não quero me esconder, pois já fiquei escondida por muito tempo. Então eu continuo a esperar, pois não tenho coragem de me levantar, enquanto a caixa preta se desgasta, e eu fico cada vez mais sozinha, no meio daquela imensidão sem fim.